Espaços públicos e espaços privados em Laranja mecânica

Por Artur Renzo

laranja

Breve contextualização

Laranja mecânica (1971) é o nono filme de Stanley Kubrick. Com sua imagem consolidada, o cineasta já bem estabelecido em Londres e com um contrato invejável com a Warner Bros. (que durará pelo resto de sua filmografia), encontra-se como que à sombra de 2001: uma odisséia espacial (1968). Se, por um lado, tem-se o peso do monolítico de seu último filme, por outro, as tensões recém estabelecidas entre o cinema e o mercado sob a marca do espetáculo já lhe cobram respostas formais renovadas.

Laranja mecânica possui um grau de interação com o mercado e a realidade que o cerca quase sem precedentes. Um sintoma disso talvez seja sua polêmica retirada precoce de circulação no reino unido. Nesse sentido, sua resposta a 2001 em Laranja mecânica pode ser pensada como uma antecipação da grande virada de Barry Lyndon (1975) a O iluminado (1980), quando, após uma crise de bilheteria, a consolidação efetiva de uma estética pós-moderna vai de encontro a uma nova estratégia de distribuição calcada no modelo do “blockbuster” e do retorno rápido. 

No entanto, se O iluminado expressa o momento de maturidade do paradigma pós-moderno, Laranja mecânica manifesta sua infância: situado no início da década de 70, e portanto no berço dos debates contemporâneos acerca da pós-modernidade, o filme contém uma sensibilidade bastante apurada às novas transformações na matéria histórica com o ocaso da experiência da década de 60. Um setor fundamental, mas infelizmente muito desconsiderado, da composição do filme no qual é possível acompanhar esse processo é a direção de arte. No que se segue, pretende-se, a partir desse recorte, examinar a forma pela qual são trabalhados os espaços públicos e os espaços privados nesse ilustre filme.

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Boa parte dos significados em Laranja mecânica são construídos por paralelos, inversões, repetições que se situam no interior de uma grande estrutura formal do filme. O exemplo mais óbvio disso é pensar o filme em três partes: antes, durante e depois da prisão/reformatório. Alex revisita os lugares que freqüentou na primeira parte, na última, só que como vítima e não agressor. A direção de arte, assim como o figurino, o gestual, os diálogos tem um papel central na elaboração desses significados não diretos.

Um exemplo: a primeira cena em que Alex e seu grupo espancam um mendigo é, em termos de Mise en scène, bastante semelhante à cena em que Alex é violentado no palco diante de um público formado por membros do aparato repressivo do estado (cientistas, militares, políticos etc.) que se mostram sadicamente entretidos com a violência e a nudez exposta. Uma das coisas que esse tipo de associação faz é equiparar estruturalmente as organizações psíquicas de Alex e dos demais membros da sociedade, esfumaçando as barreiras entre civilização e barbárie. Além disso, a ponte estabelecida entre essas duas cenas sugere um paralelo entre o público que assiste a Alex no palco, e os espectadores do filme que vêem toda aquela violência estilizada na tela: a problematização das fronteiras oficiais da experimentação puramente científica encontra a contaminação recíproca do universo ficcional e do real através do processo de identificação próprio ao cinema. Aí há outro paralelo entre os filmes que Alex vê, como parte de seu tratamento, e as interpretações se multiplicam, mas não cabe desenvolver isso aqui.

Enfim, trata-se de mostrar, entre outras coisas, como as perversões de Alex seriam um sintoma social inerente à totalidade da organização social. São esses os temas que balizam a presente análise a respeito da direção de arte do filme. É interessante lembrar de antemão que o diretor de arte, Peter Wentworth-Sheilds, é arquiteto de formação – também fizeram parte da equipe Russell Hagg e John Barry (desenho de produção). Outro dado digno de nota é que grande parte do filme foi feito em locação.

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 O conjunto habitacional em que Alex vive é extremamente simbólico. Ele é um exemplo de determinado tipo arquitetura evocada no pós-guerra, chamada arquitetura da reconstrução ou “nova arquitetura”, onde tratava-se de recuperar as concepções dos canônicos modernos como Le Corbusier, Walter Gropius, Mies van der Rohe em projetos urbanísticos da década de 50 e 60.[i] O dado importante é que quase todos esses esforços tiveram como saldo um fracasso sem precedentes. Um dos mais conhecidos estudos de caso é o do conjunto habitacional Pruitt-Igoe, de Minoru Yamasaki, em St.Lois. Talvez isso se dê porque Charles Jencks decretou, no dia de sua implosão, a morte da arquitetura moderna. Esse momento marca, simultaneamente, o início dos debates sobre a “pós-modernidade” – trata-se do início dos anos 70: Aprendendo com Las Vegas, de Robert Venturi é de 1972, lá ele refuta, quase ponto a ponto, a Carta de Atenas, de Le Corbusier. Curiosamente Laranja mecânica foi lançada no mesmo ano da implosão do conjunto em 1971.

O que é essencial, aqui, é discutir como aquilo que foi preconcebido como um grande projeto de viver – a esquematização das necessidades humanas nas “máquinas de morar” de Le Corbusier – não resiste às forças invisíveis da burocracia e da especulação e às novas exigências de uma individualidade plasmada com a experiência da mercadoria. Quando realiza-se, realiza-se deformado. A eleição de um ponto forte extrai de um dado histórico como esse, as implicações de uma verdadeira crise de sociabilidade que grita suas contradições através da arquitetura – um dos produtos culturais mais diretamente ligados à vida e às dinâmicas de sociabilidade.

Após uma noitada de drogas, sexo e violência, vemos, num travelling, Alex atravessando o pátio degradado de seu conjunto habitacional. Essa cena não tem outra função que não essa de situá-lo em sua casa. No voice over ele diz poucas palavras: “Where I lived was with my dadda and mum, in Municipal flat block 18A linear North”. Três dados são importantes aqui. Primeiro: antes de responder onde ele mora, ele diz que mora com os pais, expondo, como que num ato falho suas prioridades inconscientes ligadas a ‘moradia’ – isso terá mais significado adiante. Segundo: mora num conjunto habitacional municipal. Terceiro: “norte linear”, são duas palavras de matriz moderna, que remetem a orientação, progresso, positivismo, planejamento linear etc. confirmando o contexto e o que se encontra por traz da gênese desse tipo de construção.

Em seguida, ha mais um plano em que vemos Alex entrando no saguão e tendo que subir de escada. Sua postura de indiferença parece tentar esconder uma impotente insatisfação com o estado das coisas – uma dica essencial para se compreender a configuração da disposição de conduta do jovem Alex. Ele encontra uma série de obstruções no saguão que dificultam seu movimento, uma das quais é uma planta caída (simbólico de dominação da natureza etc.). Esse tipo de conjunto é pensado visando uma sociabilidade ideal; planejado em vista do agenciamento adequado de um convívio coletivo. Daí o privilégio dos espaços públicos como o saguão e o pátio (são os dois que aparecem no filme). São justamente esses espaços públicos que encontram-se completamente inaptos para sociabilidade – interditados de sujeira e destroços, desertos e perigosos (vale lembrar que Alex pertence a uma gangue de rua e, pensando agora no filme como um todo, os espaços públicos da cidade são cobertos de desordem e violência, ocupados por vândalos, ladrões, bêbados, mendigos, policiais corruptos etc.)

No entanto, o potencial crítico que o filme extrai de um entrave como esse está no fato de revelar uma crise da própria racionalidade. Grosso modo, trata-se de insistir na idéia de que os verdadeiros impasses de nosso laço social não podem ser resolvidos através de uma reforma urbanística, pois são conseqüências inevitáveis de forma de vida capitalista.

Essa contradição ganha corpo quando, depois do saguão, vemos Alex em sua casa. Ao contrario da parte externa de seu conjunto habitacional cinza, de concreto aparente, espaçoso etc nos moldes da arquitetura moderna, sua casa é um pastiche inacreditável de cores e texturas chamativas, além de evocar certa claustrofobia (como era comum, a cozinha desses conjuntos era sempre muito pequena). Há no mínimo 10 texturas extremamente diferentes entre si, e todas extravagantes e, arriscaria dizer, “bregas”. É como se a falta de vida e experiência do lado coletivo tivesse seu contrapeso na excessiva decoração dos interiores privados. Cercado de seus objetos aos quais mantém certo apego Alex termina o dia se masturbando sozinho no seu quarto. Os quatro bonecos de Jesus cristo dançando Beethoven também são extremamente significativos de uma sociedade em crise que ainda sofre os efeitos de uma desmistificação profunda do mundo – tema que merece, por si só, outro estudo.

Não deixa de ser extremamente significativo que, no dia seguinte, Alex irá a uma ‘galeria’/shopping. Lá, como comprador, ele é rei: isso aparece na sua postura, no seu figurino, bem como na música e na maneira pela qual a câmera o acompanha. As cores, as luzes e os reflexos da galeria são aqueles que emanam da colorida diversidade das mercadorias ali expostas. É interessante como as luzes provocam um “flare” nas lentes de forma a criar, junto com o resto do conjunto dourado e hipnótico da galeria, uma sensação de delírio semelhante àquela que permeia as imagens distorcidas dos ataques regados a drogas que Alex e seu grupo proferem.

Aliás, é interessante a ênfase, garantida por um espelho e pelo olhar de Alex, na farmácia da galeria. Ao equiparar os remédios com as demais mercadorias, o filme estabelece uma ponte com o tratamento farmacológico que Alex receberá e enfatiza a problemática ligada a sua comercialização como gestão de sintomas – questão vigente ligada à então sintomática expansão da indústria farmaceutica e o desenvolvimento de pesquisas em antidepressivos.

A galeria de compras junto com o Korova (bar que vende leite), aparecem como os únicos espaços para um mínimo de socialização. No entanto, esse contato social parece não conseguir ser muito mais do que o sexo mecânico e quase paranóico – visto em fast-forward ao som do moog de Wendy Carlos tocando Guilherme-Tell – que Alex tem com as duas moças que encontra na loja de discos.

É interessante a escolha de direção de arte da trava da porta de Alex (que está sempre trancado em seu quarto) ser uma que assemelhe-se tanto a uma de um cofre (ela é circular e giratória com números ao seu redor). Isso como se fosse o caso de sugerir certa comparação entre Alex e o conteúdo de um cofre; como se ele fosse tão substituível quanto o permite o cálculo do equivalente geral expresso pelo dinheiro através da forma-mercadoria. De fato, é exatamente isso que acontece: quando Alex volta de seu “tratamento”, ele descobre que seu quarto foi alugado a um outro jovem. É interessante a ênfase dada ao choque de Alex ao não reconhecer seu quarto que, não possui mais seus objetos pessoais (foram penhorados, aliás), mas os de outra pessoa, que o substitui inclusive no núcleo familiar.

Enfim, Alex é mandado embora de casa para se virar sozinho. Não que a permanência em casa fosse salvaguardar alguma coisa: o filme mostra claramente como na modernidade, a atuação do estado e do mercado na formação de indivíduos sobrepõe-se à dos pais – vemos isso, por exemplo, com a figura da mãe de Alex que “vai à fábrica” e se veste uniformizada como todas as outras mulheres do filme (exceto as moças). Sua peruca colorida retira de uma vez por todas qualquer vestígio de sabedoria ligada a sua idade e experiência: nivelada pelo processo social ela aparece reduzida a uma inevitável impotência diante da concorrência posta pela dinâmica social.

Elementos como esses permitem compreender porque Alex busca de forma tão violenta reinserir-se em algo que possa significar casa – daí a ênfase na plaquinha iluminada “HOME” na entrada da casa do escritor que Alex invade no início e que a ela torna rastejando misericordiosamente mais tarde e que, por fim, se joga do andar de cima.

Os espaços da prisão e da clínica (situados na metade do filme e no eixo central e divisor da narrativa) aparecem como contraposição à desordem do mundo através de princípios organizativos facistóides. Isso como se fosse o caso sugerir que as resoluções para os conflitos de sociabilidade manifestos na crise da arquitetura e na urbanística da sociedade tendem a se voltar para a organização total sob a égide de políticas totalitárias – reiterando a mesma lógica de identidade e exclusão. Sabe-se que, ao final, Alex está longe de ser “curado”.

[i] No caso do filme, trata-se do Tavy Bridge Centre, a primeira etapa de desenvolvimento da Thamesmead, a dita “cidade do século 21” que começava a se erguer em 1963 com a pretensão de resolver 10% do rombo habitacional do pós-guerra).

Algumas referencias:

ARANTES, Otília Beatriz Fiori & Paulo Eduardo Arantes. Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas: Arquitetura e Dimensão Estética depois das vanguardas. São Paulo, 1992: Brasiliense.

BAXTER, John. Stanley Kubrick: a biography. New York, 1997: Carroll & Graf

FALSETTO, Mario. Stanley Kubrick: a narative and stylistic analysis. London, 2001: Praeger

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, 1996: Ática.

LE CORBUSIER. A Carta de Atenas. São Paulo: Hucitec: 1993.

LOBRUTTO, Vincent. Stanley Kubrick: A biography. New York, 1999: Da Capo.

VENTURI, Robert. BROWN, Denise Scott. & IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo, Cosacnaify: 2003

Laranja mecânica / 1971: Colorido / 137 min. / Warner Bros. Produção, direção e roteiro: Stanley Kubrick. Baseado no romance de Anthony Burgess

Artur Renzo, Outubro, 2011: Artur Renzo é graduando em Filosofia (USP) e Comunicação social com habilitação em cinema (FAAP). Atualmente desenvolve pesquisa de iniciação científica para a FAPESP com o título “Sobre a espetacularização da imagem em Stanley Kubrick: dialética de forma e conteúdo em De olhos bem fechados.

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